Comportamento

Ações do Japão ao combate do Covid-19, sem deixar de pensar no Brasil

Existem muitos motivos pelos quais o Japão conquistou êxito ao enfrentar a pandemia. Será que o país poderia “exportar” a solução a outros países, como por exemplo, para o Brasil?

Ações do Japão ao combate do Covid-19, sem deixar de pensar no Brasil
Amae Institute

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Este texto foi escrito a partir da leitura do artigo “Coronavírus: surto controlado no Japão sem isolamento intriga especialistas”, publicado no dia 25 de maio de 2020, no site da UOL notícias. Uma prévia deste artigo foi compartilhada em Coronavírus: saiba como o Japão lutou contra o surto.

Claro que as questões culturais japonesas auxiliaram no combate à propagação do vírus, nós as conhecemos bem: usar máscaras mesmo em momentos de não pandemia, distanciamento social mesmo quando se cumprimentam, distribuição de higienizadores para mãos em locais públicos, com destaque para os banheiros que, via de regra, contém álcool para higienização dos assentos sanitários antes do uso, além de não usar sapatos utilizados na rua dentro de casa.

A5 - Carine Goto

No entanto, gostaria aqui de levantar duas questões. A primeira é em comparação ao Brasil (embora saibamos que toda comparação apresenta suas generalizações, mas que podem ser necessárias para apreendermos algo de universal) e as diferentes formas de vida que se leva em um país de terceiro mundo em plena crise político-econômica e um país estável politicamente com pleno emprego[1], sem descartar as diferenças geográficas e populacionais.

A taxa de desemprego no Japão nos últimos anos oscilou dentro da casa dos 2%, algo entre 2,2 e 2,5%[2], enquanto isso no Brasil falamos em desemprego na casa dos 11% no primeiro trimestre de 2020, segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Para piorar a história o Brasil ainda é um dos países reconhecidos por sua grande desigualdade social, ou seja, um país onde encontramos pessoas muito ricas e pessoas em extrema pobreza. Já no Japão, a maior parte da população é reconhecida como classe média.

Isso faz muita diferença quando pensamos em combate à pandemia, onde precisamos tanto de materiais básicos para evitar a propagação do vírus (máscaras, álcool gel, água e sabão, etc), quanto infraestrutura mínima que permita ações mais coletivas (sistema de saúde organizado, leitos e equipamentos disponíveis, possibilidade de isolamento das pessoas infectadas em instituições ou em suas casas, e também planos de ajuda econômica para momentos de emergência).

Enquanto no Japão temos a maioria da população empregada formalmente, com habitação disponível, com acesso à água potável e esgoto encanado, no Brasil sabemos que a realidade é bem diferente.

Em qualquer cidade que vivamos teremos contato com a extrema pobreza, geralmente não precisamos andar muito pelos centros urbanos para nos deparar com moradores de rua e favelas, ou seja, pessoas com grande dificuldade de acessar o básico como água potável.

Sabemos inclusive que a população de rua enfrenta grandes barreiras para conseguir uma consulta no Sistema Único de Saúde, quando todo nosso preconceito é concretizado na burocracia ao exigir comprovante de endereço para a inscrição em um posto de saúde[3].

Também não falamos aqui da dificuldade de adquirir alimentos pela população mais pobre, quando a moda na internet é dar dicas dos super alimentos para “turbinar” o sistema imunológico, mas claro a internet também não está disponível para eles.

Colocada essa primeira questão mais sócio-econômica, apresento a segunda, referente ao sistema de saúde: o Japão se mostrou bem-sucedido no combate ao coronavírus com um sistema de saúde privado, contudo sem deixar de ter uma política de saúde coletiva[4].

Ao contrário dos sistemas de saúde europeus que temos como exemplo no Brasil, caracterizados por serem gratuitos e universais (onde todos podem ter acesso, não apenas quem tem carteira de trabalho assinada e paga o seguro de saúde) e que imaginamos que enfrentariam de melhor forma a pandemia.

Que elementos poderíamos destacar no sistema de saúde japonês?

Lembrando que é um sistema muito criticado pelos brasileiros que vivem no Japão. Acredito que o Japão tenha aprendido muito com as epidemias anteriores, como a influenza e o SARS, para lidar com o coronavírus.

Alguns pontos duramente criticados no início da pandemia, agora são motivos de reflexão para entender o sucesso japonês. Destaco alguns:

1) Acesso à informação

Logo que se verificou que o novo vírus estava se espalhando pela Ásia provocando sintomas graves os japoneses providenciaram canais de comunicação para que as pessoas tirassem dúvidas sobre sintomas e tratamento. Diversas prefeituras divulgaram contatos telefônicos e informativos à população, de forma bastante didática.

2) Se tem sintomas, fique em casa

Ao mesmo tempo que os contatos para tirar dúvidas podem ser elogiados, também foram criticados, na medida em que pessoas com sintomas do Covid-19 eram orientadas a permanecer em casa.

Aqui entra um tema bem polêmico, mas que podemos aprofundar um pouco sobre a própria concepção da medicina no Japão. No Japão é muito comum que diante de sintomas diversos a orientação não seja “procure um médico imediatamente”, mas “espere um pouco para perceber a evolução do quadro”.

Entre os brasileiros essa conduta é bastante criticada, muitas pessoas retornam do médico japonês dizendo que foram mal atendidas, pois não fizeram exames ou passaram remédios adequados (segundo as expectativas dessas pessoas).

A medicina japonesa, em alguns aspectos, não é tão intervencionista quanto a brasileira (ou de outros países) e age com mais cautela antes de propor exames invasivos (que também oferecem risco, embora banalizados) ou receitar medicações.

Um exemplo simples é o da febre, enquanto entre os brasileiros é um sintoma que precisa ser extinto com medicação logo que surge, entre os japoneses não é algo tão alarmante e pode ser combatido sem medicamentos, usando emplastros frios.

Podemos pensar que a febre é um sintoma que nos alerta de outra coisa, acabar com a febre não acaba com a doença e é ela que precisa ser descoberta, e muitas vezes o corpo consegue dar conta das doenças sem precisar de grandes intervenções.

Por conta dessa diferença na própria prática médica, a conduta para os primeiros casos do Covid-19 foi a de ficar em casa e tirar suas dúvidas sobre o tratamento pelo telefone.

3) Consultas com médico sem sair do carro

N37 - 18-05-2020

A mesma conduta usada anteriormente para a influenza foi aplicada para o Covid-19, se você tem chances de estar contaminado e precisa de uma consulta médica, um profissional de saúde vai até o estacionamento e te consultará dentro do carro. Algo que foi muito criticado, mas preveniu a contaminação em massa de outros pacientes e profissionais da saúde.

4) Limitação dos testes

A5 - Carine Goto

Talvez o item mais polêmico e que ainda contou com a elaboração de uma teoria conspiratória, quando a oposição política do governo disse que a subnotificação era uma tentativa de mostrar um cenário favorável ao acontecimento das Olimpíadas.

Porém, num primeiro momento a limitação dos testes pode ter contribuído para que pessoas sem a doença não corressem atrás dos exames, aumentando a chance de se contaminar.

Além disso, o teste feito somente com indicação médica restrita impediu valores exorbitantes e qualidade duvidosa pela procura excessiva espontânea, e ainda não sobrecarregou os laboratórios com testes desnecessários.

Lembremos aqui, num segundo momento, quando a pandemia tornou-se mais agressiva o governo japonês aumentou a quantidade de testes disponíveis e flexibilizou os sintomas para realizar o pedido. Não se descarta a importância da epidemiologia.

5) Intervenção do Estado na comercialização de produtos essenciais ao combate da pandemia

N40 - 15-05-2020

Diante do desaparecimento das máscaras dos postos de venda, alguns lugares começaram a cobrar preços exorbitantes, mas o Estado não demorou para pensar em alternativas de acesso da população. Inicialmente alguns hospitais venderam quantidades limitadas de máscaras.

Posteriormente, o governo elaborou alguns planos, passando pela proposta ruim do primeiro-ministro em entregar duas máscaras de tecido para cada família, independente da quantidade de membros, à criminalização da revenda dos produtos essenciais como máscaras, com pena de prisão ou multa.

Para concluir, temos duas realidades bem diferentes, mas neste momento todos se perguntam como conter a epidemia de Covid-19.

Quando os casos se iniciaram no Brasil e a quarentena começou a ser praticada pelas pessoas, o Japão foi usado como modelo de um país que estava controlando os casos sem precisar de medidas mais drásticas de isolamento.

Mas o caso do Japão poderia ser aplicado no Brasil?

Realidades sócio-econômicas distintas requerem políticas distintas. E mesmo sendo um país disposto a diversos tipos de esforços contra o coronavírus, pouco tempo depois o Estado de Emergência foi declarado, chamando a atenção das pessoas para o agravamento da situação do contágio e convocando ao isolamento, ainda que não obrigatório.

Acredito que o fato do Japão ser um dos países menos desiguais do mundo conta muito a favor do controle da pandemia, pois estamos falando de condições materiais favoráveis de grande parcela da população na aquisição de produtos básicos no combate ao coronavírus e infraestrutura disponível para isso. No caso da saúde, várias ações criticadas hoje são motivos de reflexão.

Deixo aqui uma experiência de quando eu ainda estava no Brasil: certa vez conversando com uma médica de família e comunidade ela me disse que não era a toa que o Japão fosse um país tão longevo, isso também tinha relação com o sistema de saúde menos invasivo, a forma como a medicina é praticada no Brasil leva cada pessoa a fazer muitos exames desnecessários e a tomar muitos remédios, embora pareçam inofensivos, tantos os exames quanto as medicações podem levar a danos na saúde.

No entanto, fomos moldados por essa medicina e estamos acostumados a medir a qualidade do médico pela quantidade de exames que ele solicita[5], mas precisamos estar mais abertos para outras possibilidades de cuidado, que incluam nossa percepção sobre nós mesmos.


[1] Um país de pleno emprego não quer dizer que não tenha desemprego, mas que a maioria de sua população tenha emprego formal e certa flexibilidade quando por qualquer motivo sai de um emprego para ingressar em outro, conseguindo uma recolocação em pouco tempo e com relativo pouco esforço.

[2] Segundo dados da NHK em 2019.

[3] Realidade de vários municípios, embora a recomendação do Sistema Único de Saúde brasileiro seja de acesso para todos.

[4] Embora as instituições de saúde no Japão sejam todas privadas, há um projeto coletivo de saúde, que organiza essas instituições. Saúde Coletiva não necessariamente precisa ser pública, como acontece no Brasil.

[5] Este é um tema bastante debatido em áreas mais críticas da saúde, como a Saúde Pública e Coletiva.

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