Comportamento

Mídias sociais e psiquê: o que o caso de Hana Kimura nos mostra?

O que poderia explicar esses fenômenos? Que conexões podemos fazer com o triste acontecimento de Hana Kimura?

Mídias sociais e psiquê: o que o caso de Hana Kimura nos mostra?
Amae Institute

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Hana Kimura, uma garota japonesa de 22 anos, profissional de luta livre e participante do reality show Terrace House. Ao contrário dos diversos outros realitys ao redor do mundo, os participantes não ficavam confinados na casa luxuosa de Tóquio, mas conviviam e mantinham suas vidas também fora da casa, trabalhavam, estudavam, saíam para fazer compras, passeavam por outros locais. Enfim, viviam uma vida corriqueira, com o detalhe de estarem sendo filmados e suas imagens transmitidas para diversos países via Netflix.

A ideia do programa era colocar 6 jovens para conviver em uma grande casa, com dois carros, 3 homens e 3 mulheres a procura do amor e sem roteiro. Além das imagens geradas, uma equipe de comentaristas caracterizava o programa japonês com análises engraçadas e línguas afiadas. O programa teve início em 2012 e contou com uma temporada no Havaí. Hana Kimura participava da temporada 2019-2020 em Tóquio que passava por um período de pausa por conta do coronavírus.

https://www.instagram.com/p/B7nDG-eJr4P/

No último dia 23 de março Hana Kimura se suicidou em sua casa em Tóquio, onde morava sozinha, tudo indica que utilizando gás tóxico. Ela havia postado nas redes sociais que recebia comentários que a machucavam e precisava lidar com isso diariamente.

Para quem acompanhava o programa distribuído pela Netflix, sabia que Hana era uma garota divertida, tímida com relação ao amor, que no primeiro dia que entrou na casa se apaixonou por um jogador de basquete, mas viveu um amor platônico. Ela dizia que estava à procura do amor. Quando se deparava com essas questões reagia com risadas incessantes, cobrindo o rosto de vergonha.

Seu visual era extravagante, chegou ao programa com longas tranças pinks e depois mudou seus cabelos para um Chanel rosa claro. Garota bonita de pele queimada e traços fortes, diferente do estereótipo japonês de moças frágeis e peles pálidas. Em um dos episódios falou de sua insegurança com relação à imagem, por não estar no padrão estabelecido de beleza japonês.

Após o amor platônico com o jogador de basquete, Hana começa a perceber um outro participante chamado Kai, aspirante a comediante norte-americano de ascendência japonesa. O interesse era mútuo, mas Kai estava passando por uma crise pessoal sobre seus interesses profissionais. Kai também falava que estava passando por dificuldades financeiras, mas o mais importante era ter tempo para se dedicar ao que gostava.

O começo da triste história de Hana parece que é disparado com uma viagem à Quioto, financiada por um dos participantes. Nesta viagem Kai deixa uma má impressão em Hana, quando não se dispõe a dividir as contas e não assume algumas tarefas como gratidão pela viagem. Hana fala à sua companheira de quarto como estava se desinteressando de Kai a partir de suas ações.

No retorno da viagem, Kai ao colocar sua roupa suja na máquina de lavar não percebe que um dos trajes de luta de Hana está no fundo e coloca a máquina para funcionar, incluindo a função de secagem, o que estraga a roupa de Hana.

Neste momento precisamos dizer que trata-se dos encontros e desencontros do amor, transmitidos pela televisão. Tudo aquilo que vemos nas comédias românticas acontecendo ao vivo. Dois jovens na dança do bem-me-quer, mal-me-quer, na eterna dúvida da paixão, do gostar, do estar junto. Tudo aquilo que passamos em alguns momentos de nossas vidas sendo televisionado.

A partir deste episódio em que Kai estraga a roupa de Hana, uma discussão se desencadeia. Hana estava à flor da pele, não se tratava apenas da roupa, mas de todas as situações que havia passado, de sua confusão com relação ao amor. Kai foi por um tempo aquele com quem ela gostaria de estar junto, mas não tomou iniciativa embora também gostasse de Hana, ela também não. Na espera de que pudessem se encontrar, o desencontro aconteceu.

https://www.instagram.com/p/B_69J6TpYfY/

Quantas vezes um jovem passa por esses desencontros amorosos na vida? Provavelmente algumas. Todas as inseguranças de uma idade onde há muita pressão parece que se afloram quando o tema é o amor. Mas, via de regra, superamos depois de um período de luto, cada um em seu tempo.

Após a discussão, em que Hana se exalta, Kai resolve sair do programa, antes disso ocorrer pede desculpas e diz que pagará o valor do traje de luta de Hana trabalhando mais vezes por semana. Hana o perdoa, mas na despedida não o abraça, disse que não estava preparada, mas o abraço ficaria para depois, para um próximo encontro.

Quando o episódio vai ao ar, Hana é duramente criticada pelos fãs do programa, algumas reportagens dizem que comentários falando para que saia do programa e nunca mais apareça na televisão foram escritos para a moça.

O que temos aqui? Uma desilusão amorosa de uma jovem, televisionada para o mundo, com repercussão nas mídias sociais.

Embora para algumas pessoas isso possa parecer pouco, precisamos pensar sobre o que é a internet para as últimas gerações, para aqueles que se reconhecem através dos likes e deslikes.

Para a psicanálise um sujeito se constitui a partir de processos inconscientes que não estão desligados do social. Em outras palavras, podemos perceber diferenças entre as gerações por conta das mudanças no mundo, em nossas relações com as instituições e forma de lidar com dinâmicas econômicas e políticas. O tema é bastante complexo, mas isso só mostra que o ser humano é uma profusão de acontecimentos em intersecção.

Quando nascemos estamos sujeitos aos cuidados de um adulto, em geral aquele que exerce a maternagem (embora nem sempre seja a mãe). Esse cuidador que a princípio zela pela vida da criança é também aquele que encarna uma figura essencial para nossa constituição, essa figura se desloca para outras instâncias no decorrer da nossa vida. O que temos de central aqui é que essa figura pode ser tanto ameaçadora quanto figura de amor, e o que mais queremos é despertar seu desejo para sermos desejados/amados.

https://www.instagram.com/p/B1JdMfaAzCf/

Em uma das frases de despedida de Hana, divulgadas pela mídia, ela diz que era uma pessoa fraca e que queria ser amada. Essa é a questão da grande maioria das pessoas, Hana não destoava em nada em sua forma de ser, de desejar, mas a internet para ela, assim como para a maioria dos jovens, pode ter encarnado essa figura da qual precisamos despertar o desejo ou no mínimo se apresenta como um mediador para testarmos a temperatura do quanto somos desejados.

De acordo com a passagem do tempo e as mudanças na sociedade, também temos mudanças na nossa formação psíquica. Nos últimos tempos temos vistos alguns fenômenos que antes eram raros, tornarem-se mais corriqueiros. Entre os jovens pudemos ver a questão da automutilação tornar-se “popular” e, mais recentemente, o suicídio.

Mas o que poderia explicar esses fenômenos? Que conexões podemos fazer com o triste acontecimento de Hana Kimura?

Como já dissemos, quando uma criança nasce é necessário uma figura da maternagem para que ela se reconheça através do outro. É observando e interagindo com esta outra pessoa que ela vai dando unidade ao seu corpo e se reconhecendo como sujeito. Se este outro cuida bem da criança ela tem grande chances de se desenvolver de forma saudável, mas se esse outro é negligente o bebê tem inclusive chances de morrer, ou seja, é uma outra pessoa a qual a criança está a mercê. A constituição psíquica da criança passa por essa dinâmica até que este outro deixe de ser ameaçador e se torne um outro como ela, mas esse primeiro momento de se reconhecer através dos olhos do outro é essencial.

Vários autores da psicanálise apontam para algumas dificuldades das últimas gerações em passar por esse período – de dar unidade a si como sujeito. Como consequência temos uma série de fenômenos que tentam suturar essa passagem frágil. Uma delas poderia ser a busca de um “olhar” através das mídias sociais, olhar equivalente ao outro da maternagem em sua dualidade de ameaçador/desejante. A tentativa de despertar um “olhar” de ser desejado é gritante em mídias como Instagram e Facebook, vale tudo para ser reconhecido na internet. Tempos atrás fomos expectadores de fotografias de pessoas plantando bananeira em lugares perigosos, inclusive algumas pessoas morreram na tentativa de serem fotografadas. Segundo reportagem da BBC[1] em 2018, a busca pela selfie perfeita teria matado cerca de 259 pessoas no mundo entre 2011 e 2017. Em outras palavras, para ser desejado pelo outro que está encarnado na internet vale tudo, mesmo a morte.

Não podemos entender fenômenos como este apenas como moda da internet ou como repetição em decorrência de vídeos e tutoriais, mas trata-se de algo mais profundo, algo da própria constituição dos sujeitos. A tentativa de ser reconhecido por este outro, através do olhar da internet diz de um fenômeno com características de necessidade.

Algum tempo atrás também presenciamos nos programas de televisão pessoas que faziam performances de perfuração corporal: grandes agulhas que atravessavam o corpo, ganchos introduzidos na pele para realizar suspensão corporal, dezenas de piercings com intenção estética. Autores como o psicanalista Abílio da Costa-Rosa nos chamaram a atenção para esses fenômenos como típicos de um momento específico socialmente que influenciavam nossa formação psíquica. Para algumas pessoas causar um olhar de espanto direcionadas a elas próprias trazia calma diante de uma desintegração psíquica. O autor chamou-os de “narcisos-hipermodernos”, fazendo referência aos aspectos psíquicos ligados aos aspectos sociais.

Se Hana Kimura nos provocou um olhar de espanto ao ler de seu suicídio, não foi algo que ela pode observar, não se trata da mesma coisa, no entanto há alguma relação na busca de um olhar para apaziguamento e sobre fenômenos que hoje parecem mais comuns, relacionados aos aspectos sociais contemporâneos. No caso da moça de Terrace House, ela estava à exposição no reality show, tinha uma profissão ligada à imagem (luta livre) que levava muitas pessoas a assistirem suas apresentações, como qualquer jovem estava conectada intensamente às mídias sociais e diante de críticas ao que mostrava publicamente, sucumbiu. Vemos aqui um sofrimento muito grande gerado por comentários na internet, algo que causa estranhamento nas pessoas mais velhas, porque não compreendem essa dinâmica psíquica vivida pelas novas gerações. Nesse caso, não eram somente comentários, mas a rejeição insuportável diante da necessidade de ser amada pelo outro.


[1] Reportagem intitulada “Selfie mortal: busca pela foto perfeita já matou 259 pessoas pelo mundo”, de 04 de outubro de 2018, BBC News Brasil.

Um comentário

Ishihara San

Faltam mestres de verdade. Essa geração não difere das anteriores, porém agora tudo está pulverizado seguindo a diversidade de gosto de opiniões. Mas como disse, faltam mestres ou pelo menos encontrar e seguir um verdadeiro mestre ou verdadeira mestra.
Um diálogo estabelecido entre um jovem e alguém experiente faz toda diferença para enfrentar o mundo.

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