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Bullying no Japão: o que pais e mães brasileiras precisam saber

Nas escolas japonesas um aluno diferente dos outros será o alvo. Isso é o mesmo em toda a sociedade japonesa. Então, se você for talentoso em sala de aula, ou se for uma garota bonita demais, ou se tocar bem um instrumento musical ou se apenas agir de forma diferente, você é um alvo

Bullying no Japão: o que pais e mães brasileiras precisam saber
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Parte da série Matérias Especiais, em 75 posts

Depois do suicídio de Hana Kimura, em março deste ano, a discussão sobre bullying voltou a tomar os noticiários e debates públicos no Japão. Hana Kimura ganhou fama internacional depois de participar do programa Terrace House da Fuji TV (transmitido globalmente pela Netflix). Acredita-se que ela sofreu cyber-bullying e isso a levou a cometer suicídio. Para entender melhor quem era Hana e o que aconteceu com ela, recomendo a leitura do artigo Mídias sociais e psiquê: o que o caso de Hana Kimura nos mostra?, da psicanalista Carine Sayuri Goto.

Inúmeras reportagens, textos e discussões foram publicadas na internet sobre esta trágica morte. Agora, os setores privado e público estão se mobilizando para criar novas regras de utilização de redes sociais e combater discursos violentos: o Governo e o Partido Liberal Democrata japonês estão liderando um grupo de trabalho para criar um sistema de prevenção de publicações “mal-intencionadas”, enquanto as empresas discutem implementar regras de conduta mais rígidas nas redes sociais [1]. A tentativa é coibir comportamentos abusivos e prevenir que novos casos como este aconteçam. Hana Kimura é mais uma vítima desta prática antiga e, infelizmente, comum no Japão.

O bullying (ijime) e cyber-bullying (net-ijime) são uma preocupação sempre presente no Japão. Constituem um problema que exige ações urgentes por parte do Governo e demais representantes eleitos, e o reconhecimento pela sociedade. Apenas em 2018, foram reportados mais de 543,9 mil casos de bullying em escolas japonesas, segundo dados do Ministério da Educação [2]. Bullying se tornou, literalmente, caso de polícia, com 266 estudantes presos ou levados sob custódia da polícia japonesa, por cometerem bullying, em 2019 [3].

O bullying já se tornou um problema estrutural na sociedade japonesa, e considerado o principal desafio nas escolas desde meados de 1980, sendo uma das principais causas de abandono escolar e suicídio entre estudantes. Ao mesmo tempo, esta violência não tem sido reconhecida pela sociedade japonesa como uma questão tão relevante assim, de acordo com a Prof.ª Dr.ª Shoko Yoneyama, do centro de estudos asiáticos da Universidade de Adelaide (Austrália) [4]. Para a Prof.ª Yoneyama, uma das razões para isto é crença de que “bullying prepara as crianças para o futuro” e de que seria um rito de passagem. Isto não acontece apenas no Japão (os E.U.A. são famosos por essas ideias), mas aqui o bullying encontrou terreno fértil na cultura de conformismo e rígida hierarquia que pressionam jovens e adultos, estudantes e profissionais, tanto por razões sócio-históricas quanto institucionais. Yoneyama chega a afirmar que o bullying “parece ter se tornado o conceito-chave na compreensão da sociedade japonesa contemporânea”, com publicações chegando a afirmar que o Japão é uma bullying Society (ijime shakai) [5].

Mas o que exatamente significa bullying? Como o bullying (ijime) funciona no Japão? E por que pais e mães brasileiras, no Japão, precisam conhecer e tomar cuidado especial com este fenômeno? Estas são algumas das perguntas que eu gostaria de tentar responder neste artigo.

1. Mas afinal o que é Bullying?

Pois bem, mas o que exatamente é bullying? O que diz este conceito tão fundamental no Japão, e tão discutido por tanta gente? Para a Organização Mundial de Saúde (OMS), bullying é uma forma de maus-tratos, vista principalmente nas escolas e no local de trabalho, com exposição constante a agressões físicas e/ou psicológicas, “incluindo provocações, xingamentos, zombarias, ameaças, assédio, provocações, trotes, exclusão social ou boatos”. De acordo com Mitsuru Taki, do Instituto Nacional de Pesquisa de Políticas Educacionais, o bullying (ijime) no Japão tem algumas características diferentes do conceito ocidental: ijime “é um tipo de comportamento agressivo pelo qual alguém, em uma posição de dominância em um grupo ou interação grupal, de forma intencional, sozinho ou coletivamente, causa sofrimento psíquico ou físico a outra pessoa deste mesmo grupo”.

Ijime seria diferente do bullying ocidental porque, primeiro, o poder de quem comete o ato agressivo vem de sua posição e interação em um grupo, não de características individuais (como ser a garota mais bonita do colégio ou o melhor jogador do time de futebol americano, como nos filmes de Hollywood), e a vítima faz parte deste mesmo grupo, seja uma sala de aula, um escritório ou empresa. Além disso, a característica central do ijime é que a intenção dos agressores é causar sofrimento psíquico à vítima, mesmo quando usam força física, buscando isolá-la ou humilhá-las. Mitsuru Taki insiste que “independente da forma de bullying, o ‘objetivo’ do bullying japonês é causar sofrimento psíquico” [6]. Ele afirma que ijime tem três características: (1) acontece em um grupo em que a maioria se percebe como iguais e agem, como um grupo (ainda que apenas um deles atue diretamente), para excluir e humilhar a vítima; (2) ijime ocorre por um desequilíbrio de poder dentro do grupo, e a depender da situação, aquele que comete bullying pode se tornar a vítima e; (3) ijime ocorre com frequência, não se tratando apenas de uma provocação isolada: ijime é tanto mais nocivo quanto mais for frequente, quando a vítima não consegue escapar àquele grupo e continua sendo exposta às agressões.

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O ijime ocorre sempre em função de um “desequilíbrio de forças”, seja porque a pessoa é mais fraca fisicamente, está em uma posição hierarquicamente inferior, ou em menor número. Normalmente, a vítima é identificada como diferente, seja por características pessoais ou por um comportamento que o grupo não aceita. Isto pode ser verdade também para quem se destaca em esportes, artes, ou mesmo por ser um estudante popular, mais inteligente ou (considerado) mais bonito ou bonita. Ao destoar e desagradar o grupo, esta pessoa pode se tornar um alvo, ser isolada e (em função deste desequilíbrio de forças”) se tornar vítima de bullying.

“O Japão sempre teve problemas com o bullying nas escolas, mas me parece que tem havido mais crianças cometendo suicídio relacionados ao bullying e acho que isso se tornou um problema maior para as escolas, para as autoridades educacionais e para o governo” afirma Mieko Nakabayashi, professora da Universidade Waseda.[7]

Na Netflix, um filme de anime muito bonito retrata bem o ijime: “A voz do silêncio” (Koe no Katachi). Neste filme, uma menina com deficiência auditiva chamada Shōko é transferida para uma nova escola. Inicialmente, todos estão animados para serem amigos dela, mas acabam se cansando de sua forma diferente de se comunicar e ela é isolada da turma. Um desses colegas, Ishida Shōya, é um menino popular na sala que é especialmente cruel com ela, destruindo, repetidamente, seus aparelhos auditivos. Quando a mãe de Shōko entra em contato com a escola e a turma é confrontada, é Shōya quem é responsabilizado e acaba isolado da turma, crescendo um jovem tímido, sozinho e cheio de culpa. O filme retrata o reencontro dos dois, agora adolescentes, e a tentativa de Shōya se reaproximar de Shōko, superando os próprios sentimentos de culpa e inadequação social. 

2. Bullying e as crianças brasileiras

A cultura de disciplina e hierarquia da sociedade japonesa, e o fato de ser um país tão “homogêneo” racialmente (98% da população é de japoneses nativos), fazem do Japão um terreno fértil para o bullying. Estas

Ok kmcaracterísticas intensificam o desequilíbrio de forças e destacam negativamente as diferenças, entre quem não segue as regras institucionais ou dos grupos, e dos não japoneses.

Aqui, há um perigo real para os filhos de brasileiros: com hábitos culturais muito distintos, às vezes traços físicos incomuns para os padrões japoneses, e tendo que se adaptar a uma nova língua e conteúdo didático – os estudantes brasileiros no Japão sofrem um risco muito concreto de se tornarem alvos e vítimas de bullying. Por não dominarem a língua japonesa, estas crianças e jovens encontram dificuldade para reagir ou buscar ajuda dos professores. Segundo a Prof.ª Mieko Nakabayashi, da Universidade Waseda: “Nas escolas japonesas um aluno diferente dos outros será o alvo. Isso é o mesmo em toda a sociedade japonesa. Então, se você for talentoso em sala de aula, ou se for uma garota bonita demais, ou se tocar bem um instrumento musical ou se apenas agir de forma diferente, você é um alvo”.  Esta é uma ideia tão difundida, segundo Nakabayashi, que há um ditado japonês que diz: “O prego que se destaca para cima é martelado”.

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Outro fator problemático é que o ritmo exaustivo de trabalho imposto aos imigrantes brasileiros nas fábricas japonesas torna ainda mais difícil para os pais identificarem os sinais (muitas vezes) sutis de que seus filhos ou filhas estão sofrendo bullying. Para os filhos também é mais difícil conversar com os pais, uma vez que os horários podem não coincidir, e não é uma conversa fácil para ser casualmente discutida nas poucas horas em que pais e filhos estão juntos (e acordados) em casa. Mesmo quando os pais descobrem que seus filhos são vítimas de bullying, mais uma vez, a barreira linguística dificulta muito a busca por ajuda na escola ou junto a outras autoridades.

É importante lembrar que o ijime não acontece apenas nas salas de aula ou cara a cara. O net-ijime, ou cyber-bullying pode ser tão ou mais violento. Isso pode não fazer muito sentido para nossa geração, mas para crianças que nasceram com um celular na mão, que cresceram, foram socializadas e passam grande parte de seus dias na Internet, o net-ijime pode ser brutal e ter consequências trágicas.

3. Lei anti-bullying no Japão

Em 2013, o Governo japonês aprovou uma lei de prevenção de bullying em escolas, tornando obrigatória a notificação de casos graves confirmados ao Ministério da Educação e Governos locais. Quais seriam os casos graves para a lei? Aqueles que levam a lesões físicas e sofrimentos psíquicos graves, ou que forcem a vítima a se afastar das escolas por longos períodos de tempo. Além da notificação, comissões devem ser montadas para investigar o caso e fornecer informações necessárias às vítimas. A lei determina, ainda que os Governos local e regional devem monitorar a Internet para identificar bullying online e devem cooperar com a polícia caso se tratem de condutas criminosas.

Diferentes projetos de lei foram propostos por partidos da base governistas e pela oposição, depois unificados e aprovados na forma da Lei Anti-Bullying de 2013, após uma série de relatos de suicídios motivados por bullying, notadamente o suicídio de um aluno do ensino fundamental em Otsu, província de Shiga, em 2011. Tanto o Governo local quanto a escola negaram que se tratasse de um episódio de bullying, mas depois admitiram e se desculparam.

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Em 2012, os pais processaram ex-colegas, a escola e a província. Poucos meses depois, foram reveladas informações mantidas em sigilo pelo comitê investigativo da escola, mostrando que o estudante tinha passado por uma série de violências psicológicas e físicas. Ex-colegas chegaram a encenar um funeral e forçaram a vítima a fingir que cometia suicídio. A polícia iniciou uma investigação sobre o caso e a Prefeitura de Otsu montou um comitê investigativo independente. Em 2019, um Tribunal japonês reconheceu que bullying foi a causa do suicídio deste estudante, condenando ex-colegas de sala da vítima a pagar uma indenização no valor de 37,5 milhões de ienes (em torno de 1,76 milhões de reais, hoje) [8].

4. O que fazer?

Como nós tentamos explicar, o bullying é um fenômeno recorrente no Japão, que deve ser levado muito a sério por todos – Governos, escolas, pais e sociedade civil em geral. É uma violência de difícil enfrentamento: pode ser difícil identificar o bullying, a vítima muitas vezes se recusa a falar porque se sente humilhada e diminuída, ou porque tem medo de que não acreditem nela e o bullying se intensifique depois. “A relação que os filhos têm com os pais significa que muitas vezes são incapazes de lhes dizer o que estão passando porque existe a sensação de que não se deve sobrecarregar os outros com seus próprios problemas”, diz a Prof.ª Mieko Nakabayashi. “Da mesma forma, é difícil ir a um professor, pois isso pode atrair ainda mais atenção indesejada.”

A situação é complicada especialmente quando ocorre com filhos de trabalhadores imigrantes, que por serem diferentes cultural e fisicamente, e com dificuldades para acompanhar as turmas, podem ser vítimas preferenciais desta forma de violência.

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A primeira coisa a fazer, foi feita: buscar se informar e entender o problema. Não pare neste texto, busque outras fontes confiáveis de informação sobre o tema. Converse com seus filhos ou filhas sobre o tema, para que eles se sintam seguros para buscar ajuda quando isso acontecer com eles, e para que eles saibam que é errado fazer isso com outros, mesmo quando todos os colegas estão fazendo. É difícil conciliar trabalho e zangyou, estamos sempre cansados e com dor. Mas se esforce para ter essa conversa e para escutar seus filhos ou filhas. Observe mudanças de comportamento, não tire conclusões antes de ter uma conversa franca e aberta, e escutar o que têm a dizer sem repreendê-los.

Se seus filhos ou filhas forem vítimas, busquem entrar em contato com as escolas. Elas têm a obrigação legal de investigar, coibir estas condutas e informar às autoridades. Se você não fala japonês, procure seu tantosha, ou um funcionário brasileiro na prefeitura ou outro órgão público – é comum ter atendimento em português em dias e horários específicos.

Um comentário

アケミ

Excelente matéria!Eu que atendi muitos em sofrimento, pós auto lesão, e com ideação suicida, me empenho ao máximo em evitar tragédias deste tipo e sugiro política pública de prevenção!

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